Nome do dia
Tristão
Esclareçamos já, para evitar mal entendidos, que Tristão não quer dizer “muito triste” ou “grande pessoa triste”. Aliás, originalmente não tem nada a ver com tristeza. Trata-se de um nome de origem celta, derivado do bretão Drust ou Dustranus, que significa não tristeza mas sim barulho. Não que desejemos que o gaiato seja ruidoso, não senhor! Mas desejamos que seja um gaiato alegre, e se a alegria for barulhenta, daí não virá grande mal ao mundo. E chamando-se Tristão, está implicitamente desculpado.
Tristão é o nome de um dos cavaleiros da távola redonda do rei Artur. Para referência, eis a lista dos cavaleiros (não será exaustiva, pois há várias teorias sobre o assunto), onde encontramos, junto com Tristão, uma plêiade de outros nomes fantásticos: Agravain, Bagdemagus, Bedivere, Bors, Breunor, Calogrenant, Caradoc, Dagonet, Dinadan, Elyan o Branco, Gaheris, Galaaz, Gareth, Gauvain, Geraint, Griflet, Hector de Maris, Kay, Lamorak, Lancelote, Leodegrance, Lionel, Lucan, Meleagant, Marhaus, Palamedes, Pelleas, Pelinore, Percival, Safir, Sagramore, Segwarides, Tor , Tristão, Uriens, Yvain, Yvain o Bastardo. Gosto particularmente no Marhaus, e agora entendo melhor o que a minha mãe queria dizer quando me dizia para não ser marau.
Os cavaleiros da távola redonda tinham um código de honra, com sete pontos: busca da perfeição humana; retidão nas ações; respeito pelos semelhantes; amor pelos familiares; piedade com os enfermos; doçura com as crianças e mulheres; justiça e valentia na guerra e lealdade na paz. De certeza que o nosso Tristão, talvez não sendo propriamente cavaleiro, será sem dúvida cavalheiro, fazendo também seu este código que recebe do homónimo medieval.
O Tristão da távola redonda é o mesmo da lenda de Tristão e Isolda. No entanto, esta trágica história de amor é bem anterior à história do rei Artur. Na lenda, Tristão é sobrinho do rei da Cornualha, Marcos, e vai à Irlanda buscar a bela princesa Isolda (ou Iseu, nos antigos textos portugueses) para se casar com o rei. Só que, durante a viagem, por acidente, ambos bebem a poção mágica do amor, a qual deveria sim ser tomada por Marcos e Isolda. Está-se a ver o que aconteceu: Tristão e Isolda apaixonaram-se um pelo outro, loucamente e irremediavelmente. Mesmo assim, Isolda casa-se com Marcos, mas continua a encontrar-se furtivamente com Tristão. Claro que quando se soube disto foi um grande escândalo e Tristão foi mandado para a Bretanha. Não percebo bem esta parte, pois a Bretanha não fica muito longe da Cornualha; fica mesmo ali do outro lado do canal. Foi imprudência de Marcos, que devia era tê-lo mandado para a Austrália. Tristão, homem prático, arranjou outra Isolda, a Isolda das mãos brancas, princesa da Bretanha, com quem se casa, e a quem, continuando a gostar da Isolda original, não corre o risco de trocar o nome. A vida continua, com muitas peripécias, e às tantas Tristão é ferido mortalmente numa batalha. Na emergência, aflito, pede que mandem buscar Isolda para o curar. A Isolda amada, não a mulher, entenda-se. Só que a mulher, despeitada, fá-lo acreditar que a outra não vem. Tristão, desolado, morre, e a sua Isolda (não a mulher, a outra) ao chegar, vê-o morto e morre de tristeza.
A história de Tristão e Iseu chegou a Portugal muito cedo. O rei D. Dinis, que, como sabemos, era poeta e perseguia as donzelas pelos corredores dos seus castelos, seduzindo-as com as suas poesias (enquanto a rainha santa se entretinha a transformar pães em rosas), escreveu a seguinte cantiga de amor na tentativa de seduzir alguma moçoila, não havendo, infelizmente, registo sobre se foi bem sucedido. No entanto, aqui fica, pois pode ser útil ao nosso Tristão, daqui por uns anos:
Quero-vos eu tal bem
Qual maior posso
e o mui namorado Tristan sei bem que non amou Iseu
quant' eu vos amo, esto certo sey eu.
D. Dinis não foi o único que se inspirou em Tristão e Isolda. Mais recentemente, tivemos Richard Wagner, com a sua ópera Tristão e Isolda. Eis o prelúdio, que até dá arrepios: http://www.youtube.com/watch?
Para conhecer a história num suporte mais ligeiro, temos o filme Tristão e Isolda, de 2006, que, mesmo produzido pelo Ridley Scott, e com o James Franco no papel de Tristão e a Sophia Myles no de Isolda, não foi propriamente um grande êxito. Mesmo assim, deve ser interessante, para ver num sábado à noite, que mais não seja, pelo retrato daquela época menos conhecida da história europeia, a baixa idade média, também conhecida como a idade das trevas (“dark ages” em inglês). Watch the trailer.http://www.imdb.com/video/
Portanto, Tristão é um nome inquestionável, entranhadíssimo na cultura europeia, como poucos outros nomes. No entanto, sei bem que de Tristão se pode dizer que tem til e que isso prejudicará a trajetória internacional no gaiato. Nada mais errado!
Para começar, os tiles estão na família: o pai tem til, o avô materno tem til, o bisavô materno materno tem til, uma tia-avó materna tem til, um primo tem til. Depois, o til é um elemento distintivo da nossa língua: além do português, apenas o vietnamita o usa. Note-se que a letra ñ, que conhecemos em espanhol, não é um ene com til, é um enhe. Quer dizer ñ é uma letra única, com entrada própria no dicionário, e não uma letra com uma marca diacrítica. Finalmente, o til é um sinal gráfico com um pedigree impressionante.
Na verdade, quem inventou o til foram os gregos. Socorro-me aqui de novo dos peritos que me assessoram nas intrincadas questões relativas ao grego antigo, que temos de entender para perceber quem somos e o que fazemos. No grego mesmo antigo não havia acentos e eles eram muito felizes assim. Na altura, o grego era uma língua politónica, em que cada sílaba de uma palavra podia ser pronunciada num tom (no sentido da escala musical) diferente. Duas palavras formadas pela mesma sequência de sílabas podiam ter significados diferentes consoante o tom com que essas sílabas eram pronunciadas. É isso que acontece também em chinês e japonês, por exemplo. Com o passar dos séculos, a língua tornou-se, dizem os gregos, mais “dinâmica”, substituindo o acento tonal (melódico) pelo acento tónico (de intensidade). O acento tónico conhecemos nós bem! Aliás, temos na nossa língua vários casos em que a mesma sequência de sílabas tem significados diferentes consoante a sílaba tónica, isto é, a sílaba que tem o acento tónico. O mais famoso desses casos é o das palavras “cágado” e “cagado". Por sinal, este exemplo foi usado para contrariar a ideia de abolir os acentos gráficos nas palavras esdrúxulas, que chegou a aflorar a propósito da recente reforma ortográfica. Bem entendido que o argumento se baseia numa confusão, de que o acento tónico tem de ser assinalado por um acento gráfico, o que não corresponde à verdade, como sabemos.
Ora bem, os nossos amigos gregos dos séculos III e II antes de Cristo, com a mudança da maneira de falar, viram-se gregos para ler os textos antigos, que só usavam maiúsculas e que não separavam as palavras umas das outras. Foi então que, em Alexandria, Aristófanes de Bizâncio, num rasgo de inspiração e de criatividade, inventou os acentos gráficos, assim facilitando a vida aos seus patrícios e, de passagem, a meia humanidade no futuro. Aristófanes inventou o acento agudo, para marcar a vogal tónica; o acento grave para marcar as vogais das sílabas não tónicas; o til, para marcar o acento tónico numa vogal longa ou num ditongo. Bem visto, Aristófanes!
Na verdade, o acento grave deixou de ser usado sobre todas as vogais não tónicas e hoje apenas aparece em casos especiais. Em português também.
Portanto, o til, tal como nós o conhecemos, é um sinal da nossa herança helenística, de que tanto nos orgulhamos. Sendo o português a única língua europeia que o mantém, devemos envidar todos os esforços para o defender e para o promover. Nesse sentido, devíamos desde já encetar uma campanha para a revisão do novo acordo ortográfico, em prol da introdução do til sobre as vogais que ainda não o usam, a saber o ‘e’, o ‘i’ e ‘u’, para assinalar as nasalação da última sílaba nas palavras agudas. Por exemplo, em vez de “quem”, passaremos a escrever “quẽ”; em vez de “sim”, “sĩ”; em vez de “um”, “ũ”; etc. Havendo muitas palavras nestas condições, com o recurso ao til conseguiremos efetivamente encurtar os nosso textos, com isso poupando papel (quando os imprimimos), assim contribuindo para a ultrapassagem da crise.
Em Portugal, modernamente, Tristão não é um nome muito comum. No entanto, temos dois famosos navegadores Tristões, Tristão da Cunha e Nuno Tristão, sinal evidente de que o nome já conheceu melhores dias.
Tristão da Cunha entrou em cena já depois de descoberto o caminho marítimo para a Índia e coube-lhe comandar uma frota de navios de carga com destino precisamente à Índia, em 1506. De caminho, descobriu umas ilhas remotas no Atlântico sul. Nem sequer desembarcou, mas batizou a ilha principal com o seu nome. Nunca lá morou ninguém até 1810, ano em que um maduro se instalou na ilha, esperando fazer fortuna com a venda de óleo de leão-marinho. Atualmente, a ilha é território britânico e moram lá cerca de 80 famílias, com ao todo aproximadamente 300 pessoas. É considerado o local habitado mais remoto do mundo.
Foi também Tristão da Cunha que chefiou a famosa embaixada que o rei D. Manuel enviou ao papa Leão X, carregada de presentes sumptuosos, e que incluía um elefante albino, dois leopardos, uma pantera, alguns papagaios, perus raros e cavalos indianos.
Mas Tristão da Cunha é sobretudo conhecido através da rua que tem o seu nome e que atravessa o bairro do Restelo, em toda a sua extensão, desde a avenida da Torre de Belém até à rua dos Soldados da Índia, cruzando as ruas pares e as ruas ímpares e separando as casas de baixo (números das portas de 1 a 15 nos ímpares e 2 a 16 nos pares) das de cima (números 17 a 31 nos ímpares e 18 a 32 nos pares). Era na borda do passeio dessa rua que se disputava a volta a Portugal em carica. Também havia o salto em comprimento, a ver quem conseguia pular a rua de um lado ao outro, tomando balanço ao correr pela transversal, com os amigos a avisarem que não vinham carros. Igualmente emocionantes eram os famosos torneios de futebol de sarjeta a sarjeta. Em todas essas atividades se distinguiram o avô materno e o tio-avô materno do gaiato, que, enquanto gaiatos, moravam numa das ruas que a Tristão da Cunha cruza. Os jogos de futebol mesmo a sério eram numa rua paralela à Tristão da Cunha, com mais condições para a prática da modalidade.
Nuno Tristão é menos conhecido mas talvez mais interessante. Entrou na epopeia dos descobrimentos mais cedo, pela mão do Infante D. Henrique. De facto, em 1441, o Infante encarregou Nuno Tristão de explorar a costa ocidental de África, a sul do cabo Branco. Nas palavras de Azurara, Nuno Tristão foi “o primeiro fidalgo que viu terra de negros”! Na verdade, Nuno Tristão, terá chegado uns anos depois ao território da atual Guiné-Bissau, deixando definitivamente para trás as costas desérticas e semi-desérticas da Mauritânia e do Senegal, atingindo as zonas férteis, cobertas de palmeiras e de outra vegetação, com uma população de pele negra. Portanto, quando ouvimos nos livros de história aquela lenga-lenga dos quinhentos anos em África, pois bem, esses quinhentos anos começaram a contar com Nuno Tristão.
Uma das ruas transversais à rua Tristão da Cunha é a rua Nuno Tristão. Por sinal, é nessa rua que mora a tia Didá.
Regressando ao setor ficcional, mas agora à escala doméstica, temos o Tristão da novela Espírito Indomável, que emparelha não com a Isolda mas com a Susana, certamente por lapso do argumentista. Os dois vivem uma escaldante história de amor, que rivaliza com a medieval e que manteve grudados à tvi milhões de portugueses durante meses a fio. Pedro Lima era Tristão e Sara Prata era Susana. Uma dupla inesquecível: http://www.youtube.com/watch?
Tristão: um nome alegre, ruidoso, operático mesmo, sobre o qual esvoaça um orgulhoso til, e que assenta perfeitamente ao nosso gaiato.
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