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sábado, 19 de abril de 2014

Nome do dia: Gabriela, Gabriel

Gabriela e Gabriel são dois nomes de altíssimo valor literário, que auguram ao nosso novo rebento uma esplêndida carreira no campo das letras e, por extensão, nas artes em geral e, por mais larga extensão ainda, em qualquer domínio onde as capacidades criativas e de iniciativa pessoal sejam um requisito.

Gabriel Garcia Marquez, é claro, e Gabriela, de Jorge Amado, com certeza!

O nome Gabriel tem origem hebraica, como suspeitaríamos, e significa “homem de Deus” ou, em sentido lato, moderno, unissexo, “pessoa de Deus”. É um nome de um anjo que aparece na Bíblia em várias ocasiões, mas que ficou famoso sobretudo por o Senhor o ter incumbido da delicada e deveras espinhosa missão de anunciar a Maria que ela iria conceber o Seu filho e que havia de lhe dar o nome Jesus. Missão essa de que Gabriel se desembaraçou com muita competência, como o atestam os inúmeros quadros da Anunciação, espalhados pelas igrejas e museus de todo o mundo, dos quais este, do Leonardo da Vinci, é apenas um exemplo.

O valor documental deste quadro é duvidoso, pois não consta que o tio Leo tenha lá estado na ocasião, mas isso é o menos.

O anjo Gabriel, que também é santo, teve muita importância na história dos descobrimentos, pois deu o nome ao navio almirante da pequena armada de três naus de Vasco da Gama, na primeira viagem à Índia: São Gabriel, São Rafael e Bérrio, lembram-se? Também deu o nome ao navio almirante da subsequente armada de Pedro Álvares Cabral, aquela que por lapso descobriu o Brasil, mas parece que não se sabe se era o mesmo navio. Tenha sido o mesmo ou não tenha, a nau São Gabriel surge como o mais importante navio da história dos descobrimentos e, por conseguinte, da história de Portugal. Ponto.



O segundo Gabriel, imediatamente a seguir ao anjo, é o Garcia Marquez. Como alguém dizia ontem, Gabriel Garcia Marquez é o mais popular escritor da língua espanhola a seguir a Cervantes. Também acho. Aliás, acho ainda que um dos privilégios de ter nascido a partir da segunda metade do século XX, mais ou menos, é poder ler os livros do Gabriel Garcia Marquez. Eu ainda me lembro da primeira vez que li os cem anos de solidão e ainda hoje me dá um arrepio da espinha quando oiço ou leio de novo as primeiras linhas:

Muitos anos depois, ao enfrentar o pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas com paredes de barro e telhados de colmo construídas à beira de um rio de águas transparentes que corriam num leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente, que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar era preciso apontá-las com o dedo. Todos os anos, por volta do mês de Março, uma família de ciganos esfarrapados montava o seu acampamento perto da aldeia (…)

Quem diz que uma imagem vale mais do que mil palavras, é porque não leu isto.

(Nota: traduzi do original, eu próprio, só pelo gozo que me deu.)

De início, não se percebe bem aquela história de “conhecer o gelo”. Meia dúzia de páginas mais à frente fica explicado. Aureliano vai com o seu pai e irmão a uma espécie de feira ver uma “portentosa novidade” trazida pelos tais ciganos e que pertencera ao rei Salomão. Essa novidade estava guardada num cofre e quando um dos ciganos o abriu…

(…) saiu do cofre um cheiro glacial. Lá dentro, só havia um enorme bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas coloridas a claridade do crepúsculo. Desconcertado, sabendo que os miúdos estavam à espera de uma explicação imediata, José Arcádio Buendía atreveu-se a murmurar:
—É o maior diamante do mundo.
—Não—corrigiu o cigano—. É gelo.

Também me lembro muito bem do início do general no seu labirinto, o primeiro livro de Garcia Marquez que li no original, e que partilho aqui convosco, tal e qual:

José Palacios, su servidor más antiguo, lo encontró flotando en las aguas depurativas de la bañera, desnudo y con los ojos abiertos, y creyó que se había ahogado. Sabía que ése era uno de sus muchos modos de meditar, pero el estado de éxtasis en que yacía a la deriva parecía de alguien que ya no era de este mundo. No se atrevió a acercarse, sino que lo llamó con voz sorda de acuerdo con la orden de despertarlo antes de las cinco para viajar con las primeras luces. El general emergió del hechizo, y vio en la penumbra los ojos azules y diáfanos, el cabello encrespado de color de ardilla, la majestad impávida de su mayordomo de todos los días sosteniendo en la mano el pocillo con la infusión de amapolas con goma. El general se agarró sin fuerzas de las asas de la bañera, y surgió de entre las aguas medicinales con un ímpetu de delfín que no era de esperar en un cuerpo tan desmedrado.
«Vámonos», dijo. «Volando, que aquí no nos quiere nadie».

Vamos embora, depressa, que aqui ninguém nos quer. Grande Simão Bolívar!

Depois disto, sempre que posso leio o Garcia Marquez em espanhol.

E repito: quem diz que uma imagem vale mais do que mil palavras, é porque nunca leu estas 177.

Num registo mais pop, ou menos pop, consoante a perspetiva, temos o Peter Gabriel, vocalista inicial dos Genesis, que nos avisava faz agora 40 anos, que o cordeiro deitava-se na Broadway. É bom saber, já que estamos perto da Páscoa.

Mais recentemente, temos, vindo do outro lado do Atlântico, Gabriel, o Pensador, com as suas letras muito bem articuladas e os seus enérgicos raps.

É também do outro lado do Atlântico que nos chega o personagem mais destacado de toda a literatura de língua portuguesa: Gabriela, precisamente, a protagonista do romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Eis as primeiras linhas:

Essa história de amor – por curiosa coincidência, como diria dona Arminda – começou no mesmo dia claro, de sol primaveril em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, dona Sinhazinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas de igreja, e o dr. Osmundo Pimentel, cirurgião-dentista chegado a Ilhéus há poucos meses, moço elegante, tirado a poeta. Pois, naquela manhã, antes de a tragédia abalar a cidade, finalmente a velha Filomena cumprira sua antiga ameaça, abandonara a cozinha do árabe Nacib e partira, pelo trem das oito, para Água Preta, onde prosperava seu filho.

Por curiosa coincidência, conseguimos uma foto do crime, mas, infelizmente, não da para confirmar se Dona Sinhazinha estava usando meias pretas:



Se o livro era bom, melhores ainda foram as telenovelas: a de 1975, com a fabulosa Sónia Braga, e a de 2012, com a estonteante Juliana Paes. Neste rol de “belezuras” que incarnaram Gabriela, devemos também referir a out of this world Filipa Melo, pela sua atuação na célebre reconstituição do Bataclan, por ocasião do sexagésimo aniversário do avô materno da nossa nova Gabriela (ou do nosso novo Gabriel, se for gaiato):


Entre as duas edições da novela houve um filme, em 1983, em que Gabriela era outra vez a Sónia Braga, como no original, e o Nacib era o Marcelo Mastroianni! E esta?

Desse filme ficou sobretudo a banda sonora, do Tom Jobim, que inclui o tema para Gabriela. Não confundir com a modinha para Gabriela, de Dorival Caymmi. Esta modinha serviu como tema de abertura da novela, cantado pela Gal Costa, e começa por dois dos mais conhecidos versos da nossa língua:

Quando eu vim para esse mundo
Eu não atinava em nada.

A nossa Gabriela há de adorar ter essas duas magníficas músicas, a do Jobim e a do Caymmi, criadas especialmente para si.

A Gabriela de Jorge Amado tinha muitos atributos que eu não vou enumerar, já que este despretensioso texto talvez venha a ser lido por crianças, mas posso pelo menos referir que ela era uma excelente cozinheira, como a foto acima documenta, aliás. Tenho a certeza de que a nossa nova Gabriela cedo aprenderá a fazer os famosos quitutes e outras iguarias. As receitas estão aqui.

A propósito de crianças, não me interpretem mal: Gabriela era muito popular entre a miudagem, e tinha um amigo, o Tuísca, por quem nutria uma afeição especial. Disso é testemunho esta cena, em que ela vai ao circo (com o Tonico Bascos, enfim…) ver a atuação do Tuísca.
Foi também depois de ter estado a lançar um papagaio com o Tuísca que ela teve de subir ao telhado, revelando grande destemor, num famoso episódio que ainda hoje é recordado com saudade por todos quantos tiveram a sorte de o testemunhar, em 1975 e em 2012.

Refiramos que Gabriela era também o nome verdadeiro da tia Mimi, irmã da bisavó Fernanda. A tia Mimi era uma pessoa especial, com um feitio difícil, que às vezes exasperava quem lidava com ela, mas de quem eu gostava muito, mesmo com todas as suas imperfeições, ou até, por causa das suas imperfeições. Tal como o primo Fernando Pessoa, neste caso Álvaro de Campos, também eu “estou farto de semideuses”.

A propósito do poema em linha reta, vejam-no, ainda que truncado, na famosa interpretação de Osmar Prado, enquanto Lobato, na novela “o clone”. Na mesma novela, há uma outra cena em que Lobato se socorre de Pessoa, de novo com alguns desvios em relação ao original:

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro –
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

O poema completo, fortíssimo, está aqui.

Portanto, se tivermos um rapaz, Gabriel; se tivermos uma rapariga, Gabriela. Fica o assunto resolvido na perfeição, já que, em ambas as formas, masculina ou feminina, se trata de um nome reconhecido internacionalmente, não tem acentos nem cedilhas, é bonito, sugestivo e sonoro, liga bem com qualquer dos apelidos que vier a ser escolhido e remete-nos para referências culturais poderosíssimas.

Mais alguma coisa?


Só esta frase, em expressivo português gabrieliano, que sintetiza o que desejamos para o novo rebento, seja menino ou menina:

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