Gabriela e Gabriel são dois nomes de altíssimo
valor literário, que auguram ao nosso novo rebento uma esplêndida carreira no
campo das letras e, por extensão, nas artes em geral e, por mais larga extensão
ainda, em qualquer domínio onde as capacidades criativas e de iniciativa
pessoal sejam um requisito.
Gabriel Garcia Marquez, é claro, e Gabriela, de Jorge Amado, com certeza!
O nome Gabriel tem origem hebraica, como
suspeitaríamos, e significa “homem de Deus” ou, em sentido lato, moderno,
unissexo, “pessoa de Deus”. É um nome de um anjo que aparece na Bíblia em
várias ocasiões, mas que ficou famoso sobretudo por o Senhor o ter incumbido da
delicada e deveras espinhosa missão de anunciar a Maria que ela iria conceber o
Seu filho e que havia de lhe dar o nome Jesus. Missão essa de que Gabriel se
desembaraçou com muita competência, como o atestam os inúmeros quadros da
Anunciação, espalhados pelas igrejas e museus de todo o mundo, dos quais este,
do Leonardo da Vinci, é apenas um exemplo.
O valor documental deste quadro é duvidoso,
pois não consta que o tio Leo tenha lá estado na ocasião, mas isso é o menos.
O anjo Gabriel, que também é santo, teve muita
importância na história dos descobrimentos, pois deu o nome ao navio almirante
da pequena armada de três naus de Vasco da Gama, na primeira
viagem à Índia: São Gabriel, São Rafael e Bérrio, lembram-se? Também deu o nome
ao navio almirante da subsequente armada de Pedro Álvares Cabral, aquela que
por lapso descobriu o Brasil, mas parece que não se sabe se era o mesmo navio. Tenha
sido o mesmo ou não tenha, a nau São Gabriel surge como o mais importante navio
da história dos descobrimentos e, por conseguinte, da história de Portugal.
Ponto.
O segundo Gabriel, imediatamente a seguir ao
anjo, é o Garcia Marquez. Como alguém dizia ontem, Gabriel Garcia Marquez é o
mais popular escritor da língua espanhola a seguir a Cervantes. Também acho.
Aliás, acho ainda que um dos privilégios de ter nascido a partir da segunda
metade do século XX, mais ou menos, é poder ler os livros do Gabriel Garcia
Marquez. Eu ainda me lembro da primeira vez que li os cem anos de solidão e
ainda hoje me dá um arrepio da espinha quando oiço ou leio de novo as primeiras
linhas:
Muitos
anos depois, ao enfrentar o pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía
havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.
Macondo era então uma aldeia de vinte casas com paredes de barro e telhados de
colmo construídas à beira de um rio de águas transparentes que corriam num
leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo
era tão recente, que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar
era preciso apontá-las com o dedo. Todos os anos, por volta do mês de Março,
uma família de ciganos esfarrapados montava o seu acampamento perto da aldeia
(…)
Quem diz que uma imagem vale mais do que mil
palavras, é porque não leu isto.
(Nota: traduzi do original, eu próprio, só
pelo gozo que me deu.)
De início, não se percebe bem aquela história
de “conhecer o gelo”. Meia dúzia de páginas mais à frente fica explicado.
Aureliano vai com o seu pai e irmão a uma espécie de feira ver uma “portentosa
novidade” trazida pelos tais ciganos e que pertencera ao rei Salomão. Essa
novidade estava guardada num cofre e quando um dos ciganos o abriu…
(…) saiu
do cofre um cheiro glacial. Lá dentro, só havia um enorme bloco transparente,
com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas coloridas a
claridade do crepúsculo. Desconcertado, sabendo que os miúdos estavam à espera
de uma explicação imediata, José Arcádio Buendía atreveu-se a murmurar:
—É o
maior diamante do mundo.
—Não—corrigiu
o cigano—. É gelo.
Também me lembro muito bem do início do
general no seu labirinto, o primeiro livro de Garcia Marquez que li no original,
e que partilho aqui convosco, tal e qual:
José Palacios, su servidor más antiguo, lo
encontró flotando en las aguas depurativas de la bañera, desnudo y con los ojos
abiertos, y creyó que se había ahogado. Sabía que ése era uno de sus muchos
modos de meditar, pero el estado de éxtasis en que yacía a la deriva parecía de
alguien que ya no era de este mundo. No se atrevió a acercarse, sino que lo
llamó con voz sorda de acuerdo con la orden de despertarlo antes de las cinco
para viajar con las primeras luces. El general emergió del hechizo, y vio en la
penumbra los ojos azules y diáfanos, el cabello encrespado de color de ardilla,
la majestad impávida de su mayordomo de todos los días sosteniendo en la mano
el pocillo con la infusión de amapolas con goma. El general se agarró sin
fuerzas de las asas de la bañera, y surgió de entre las aguas medicinales con
un ímpetu de delfín que no era de esperar en un cuerpo tan desmedrado.
«Vámonos», dijo. «Volando, que aquí no nos quiere
nadie».
Vamos embora, depressa, que aqui ninguém nos
quer. Grande Simão Bolívar!
Depois disto, sempre que posso leio o Garcia
Marquez em espanhol.
E repito: quem diz que uma imagem vale mais do
que mil palavras, é porque nunca leu estas 177.
Num registo mais pop, ou menos pop, consoante
a perspetiva, temos o Peter Gabriel,
vocalista inicial dos Genesis, que nos avisava faz agora 40 anos, que o cordeiro deitava-se na
Broadway. É bom saber, já que estamos perto da Páscoa.
Mais recentemente, temos, vindo do outro lado
do Atlântico, Gabriel, o Pensador,
com as suas letras muito bem articuladas e os seus enérgicos raps.
É também do outro lado do Atlântico que nos
chega o personagem mais destacado de toda a literatura de língua portuguesa:
Gabriela, precisamente, a protagonista do romance Gabriela, Cravo e Canela, de
Jorge Amado.
Eis as primeiras linhas:
Essa
história de amor – por curiosa coincidência, como diria dona Arminda – começou
no mesmo dia claro, de sol primaveril em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça
matou, a tiros de revólver, dona Sinhazinha Guedes Mendonça, sua esposa,
expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas de
igreja, e o dr. Osmundo Pimentel, cirurgião-dentista chegado a Ilhéus há poucos
meses, moço elegante, tirado a poeta. Pois, naquela manhã, antes de a tragédia
abalar a cidade, finalmente a velha Filomena cumprira sua antiga ameaça,
abandonara a cozinha do árabe Nacib e partira, pelo trem das oito, para Água
Preta, onde prosperava seu filho.
Por curiosa coincidência, conseguimos uma foto
do crime, mas, infelizmente, não da para confirmar se Dona Sinhazinha
estava usando meias pretas:
Se o livro era bom, melhores ainda foram as
telenovelas: a de 1975, com a fabulosa Sónia Braga, e a de 2012, com a
estonteante Juliana Paes. Neste rol de “belezuras” que incarnaram Gabriela,
devemos também referir a out of this
world Filipa Melo, pela sua atuação na célebre reconstituição do Bataclan,
por ocasião do sexagésimo aniversário do avô materno da nossa nova Gabriela (ou
do nosso novo Gabriel, se for gaiato):
Entre as duas edições da novela houve um filme, em 1983, em que
Gabriela era outra vez a Sónia Braga, como no original, e o Nacib era o Marcelo
Mastroianni! E esta?
Desse filme ficou sobretudo a banda sonora, do
Tom Jobim, que inclui o tema
para Gabriela. Não confundir com a modinha para Gabriela,
de Dorival Caymmi. Esta modinha serviu como tema de abertura da novela, cantado
pela Gal Costa, e começa por dois dos mais conhecidos versos da nossa língua:
Quando
eu vim para esse mundo
Eu
não atinava em nada.
A nossa Gabriela há de adorar ter essas duas
magníficas músicas, a do Jobim e a do Caymmi, criadas especialmente para si.
A Gabriela de Jorge Amado tinha muitos
atributos que eu não vou enumerar, já que este despretensioso texto talvez
venha a ser lido por crianças, mas posso pelo menos referir que ela era uma
excelente cozinheira, como a foto acima documenta, aliás. Tenho a certeza de
que a nossa nova Gabriela cedo aprenderá a fazer os famosos quitutes e outras
iguarias. As receitas estão aqui.
A propósito de crianças, não me interpretem
mal: Gabriela era muito popular entre a miudagem, e tinha um amigo, o Tuísca, por
quem nutria uma afeição especial. Disso é testemunho esta cena, em que ela vai
ao circo (com o Tonico Bascos, enfim…) ver a atuação do Tuísca.
Foi também depois de ter estado a lançar um
papagaio com o Tuísca que ela teve de subir ao telhado, revelando grande
destemor, num famoso episódio que ainda hoje é recordado com saudade por todos
quantos tiveram a sorte de o testemunhar, em
1975 e em
2012.
Refiramos que Gabriela era também o nome
verdadeiro da tia Mimi, irmã da bisavó Fernanda. A tia Mimi era uma pessoa
especial, com um feitio difícil, que às vezes exasperava quem lidava com ela,
mas de quem eu gostava muito, mesmo com todas as suas imperfeições, ou até, por
causa das suas imperfeições. Tal como o primo Fernando Pessoa, neste caso
Álvaro de Campos, também eu “estou farto de
semideuses”.
A propósito do poema em linha reta, vejam-no, ainda que
truncado, na famosa interpretação de Osmar Prado, enquanto Lobato, na novela “o
clone”. Na mesma novela, há uma outra cena em que Lobato se socorre de Pessoa, de
novo com alguns desvios em relação ao original:
Se em
certa altura
Tivesse
voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em
certo momento
Tivesse
dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em
certa conversa
Tivesse
tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro –
Se
tudo isso tivesse sido assim,
Seria
outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria
insensivelmente levado a ser outro também.
O poema completo, fortíssimo, está aqui.
Portanto, se tivermos um rapaz, Gabriel; se
tivermos uma rapariga, Gabriela. Fica o assunto resolvido na perfeição, já que,
em ambas as formas, masculina ou feminina, se trata de um nome reconhecido
internacionalmente, não tem acentos nem cedilhas, é bonito, sugestivo e sonoro,
liga bem com qualquer dos apelidos que vier a ser escolhido e remete-nos para
referências culturais poderosíssimas.
Mais alguma coisa?
Só esta frase, em expressivo português
gabrieliano, que sintetiza o que desejamos para o novo rebento, seja menino ou
menina:
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